O verão de S. Martinho

D. Natália Bispo, senhora da «Casa do Castelo“, ex-líbris da cidade de Sabugal, brindou-nos, este ano, com uma vívida série de reportagens diárias, sobre o decorrer das festas do Magusto, no adro daquela histórica fortaleza.

Que mais incentivo precisava eu, para empreender um breve estudo histórico-etimológico sobre os termos próprios desta época, na nossa língua.

O magusto comemora-se em várias épocas do ano. Mas é sobretudo no final do “verão de S. Martinho”, que as festas atingem o seu auge.

Porquê “verão” e porquê “S. Martinho”?

O verão, do latim veranu, também chamado estio, é o período do ano em que as temperaturas permanecem elevadas e os dias são longos. No hemisfério norte, principia a 21 de março e finda com o equinócio de Outono por volta de 23 de setembro. Por essa altura começam o frio e as chuvas. Não raro, em Outubro,  as chuvas já são torrenciais e nos países nórdicos, as terras cobrem-se de neve.

Então, repentinamente, por alturas de 1 de novembro, o frio, as chuvas e a neve param, o sol volta a banhar as terras. A gente do campo aproveita para realizar umas últimas atividades agrícolas, antes que volte o inverno. Não estivessem eles habituados a este fenómeno meteorológico, e dir-se-ia que o verão tinha voltado.

Antigamente, quando os arrendamentos rurais eram anuais, os contratos faziam-se com pagamento das rendas pelo S. Miguel (29 de Setembro) ou pelo S. Martinho (11 de Novembro), em função da época das colheitas

 Mas é sol de pouca dura, pois passados onze dias de bonança regressa o inverno, desta vez mesmo a sério.

Explicado o primeiro termo da expressão, vejamos agora por quê de S. Martinho.

Martin de Tours era um soldado romano, nascido por volta do ano 316, na Hungria. Era pagão, educado na religião romana dos seus pais. Um dia, segundo a lenda, em pleno inverno europeu, ele deparou com um mendigo, tiritando de frio, que lhe pediu esmola. Martim não tinha nada para lhe dar, mas logo ali puxou da espada, cortou ao meio a sua capa de soldado, e deu uma das partes ao mendigo, para que se abrigasse do frio.

Agora era ele que sentia o frio nos ossos. Mas, nesse preciso momento, a neve deixou de cair e o sol tornou a banhar a terra, como se tivesse voltado o verão. Martim viu nisso um milagre e decidiu definitivamente converter-se ao Cristianismo, como já tinha em mente desde a sua juventude. Mais tarde foi escolhido para bispo de Tours, em França, e realizou outros milagres, pelo que foi canonizado.

O “verão de S. Martinho” é comemorado em quase todos os países da Europa. Nos países eslavos e na Hungria tem o nome alternativo de “verão das velhas”.

Mas o fenómeno não se verifica somente na Europa. Também no continente americano ele é conhecido. No tempo dos primeiros colonizadores europeus, os índios aproveitavam esse período de “falso verão” para fazerem a colheita da abóbora e do milho. Parece que foi por isso que lhe deram o nome de “Indian summer” (verão do índio). Há outras versões para a origem do termo, mas aqui só nos interessa a nossa versão europeia.

No primeiro dia de novembro, quando oficialmente principia o verão de S. Martinho, é comemorado em todo o mundo o “Dia de Todos os Santos” (conhecidos e desconhecidos). A comemoração foi iniciada em 13 de maio de 609 ou 610, quando o Papa Bonifácio IV dedicou o Panteão romano, onde até aí “residiam” todos os deuses pagãos dos romanos, a Maria, mãe de Jesus, e a todos os mártires da Igreja.

A data foi mudada para 1 de novembro, pelo Papa Gregório III (731-741), não se sabe bem porquê. Supõe-se que a razão tenha sido a cristianização dos celtas, na Inglaterra. Nessa data eles tinham antes uma festa popular, a que chamavam o Samhain. O Samhaim era a época em que se acreditava que as almas dos mortos voltavam às suas casas para visitar os familiares, para buscar alimento e se aquecerem no fogo da lareira. As tradições populares têm muita força e persistência na memória coletiva dos povos. Quando se converteram ao Cristianismo, eles continuaram a celebrar o Samhain. Era, pois forçoso, “cristianizar” também o Samhein. Por isso foi transferida a data do “Dia de Todos os Santos” para 1 de novembro.

Os mortos não foram esquecidos, sobretudo aqueles cuja data de falecimento não era conhecida. Os crentes rezavam pelos seus mortos em diversas datas, mas séculos depois da fixação da data para “Todos-os-Santos”, foi escolhido o dia seguinte, 2 de novembro, para “Dia de Finados”, ou dos “Fieis Defuntos.”

Uma tradição semelhante, baseada também no Samhain dos pagãos celtas, encontrou o seu caminho de Inglaterra para os Estados Unidos. É a “noite das bruxas” (All Hallows’ Eve ou Halloween) e comemora-se na véspera do “Dia de Todos os Santos”. É comemorado com mascarados, histórias de terror, cerimónias religiosas (alguns fazem jejuns) e as crianças vão de porta em porta a pedir presentes, doces e bolos. Algo de muito semelhante com o pedir do “pão-por-deus” nas nossas aldeias.

Com tudo isto, acham que me esqueci do magusto?

Pois não me esqueci, não senhores: O magusto vem do latim “magnus ustos” (grande fogueira), que se acende na noite de S. Martinho, para assar castanhas e em alguns sítios também bolotas. Ambos os frutos eram, no passado, alimento dos pobres. Portanto, inicialmente o magusto era o lume, não a comida que se assava com ele. Na Galícia e nas Astúrias é o magosto.

Aliás, até ao século XVII comiam-se em Portugal mais castanhas do que pão ou batatas.

Etimologia de “castanha”? Parece fácil – cor do fruto. Pois não é! O contrário é a verdade: a cor vem do nome do fruto. Em francês, ambos são “marron”, nome derivado da palavra lígure (língua romana galo-italiana) “mar”, que significa “pedra”

Antigamente, os franceses diziam “chesteine”. De chesteine, tiraram os ingleses “chest”, e “noz de Chest” é chestnut, o nome que eles dão à castanha.

Em grego era Castanea, nome de uma terra na Grécia, de onde veio o fruto que inicialmente se chamava “nós de Castanea”.

Do grego, através do latim, castanea chegou até nós como “castanha”… e castanholas. Tudo da mesma família etimológica.

Não me esqueci de nada?

Esqueci.  “No S. Martinho, castanhas e vinho”

No S. Martinho, prova-se o vinho que foi feito em setembro. Além do vinho, ainda se vai ao bagaço da uva (pé), durante a fermentação, e se lhe deita por cima água, para retirar o pouco de mosto que ainda lá tenha ficado. É a água-pé, com muito pouco álcool.

Era o que me deixavam beber, em pequeno, quando assistia ao magusto na aldeia.

Para os mais velhos, em vez de deitar água no mosto, deitavam-lhe aguardente (água+ardente).

E então ficava uma bebida mais alcoólica e mais doce do que o vinho – a jeropiga.

Créditos:

Fotografias: Internet e Drª. Maria João Lopes Cardoso

Recomendações:

Para ver, clique sobre o link:

«Ben-Rosh, uma biografia do Capitão Barros Basto, Apóstolo dos Marranos»- Elvira de Azevedo Mea e Inácio Steinhardt

Dicionário Moderno da Língua Portuguesa (com o novo acordo ortográfico)

3 Respostas to “O verão de S. Martinho”


  1. 1 alcard8 19 Novembro 2011 às 10:10 pm

    Caro Inacio:

    Um excelente artigo, de facto na minha terra e mais usual a jeropiga (“jeropia” nome popular da minha Beira) e a agua-pe com as castanhas, porque o vinho ainda nao esta feito, nessa altura!

    Shalom e um abraco.

    Al Cardoso

  2. 2 Nuno ;atos 19 Novembro 2011 às 11:25 pm

    Caro Inácio:

    Que bom voltar a ler os seus escritos! Este é particularmente saboroso para quem, como eu, gosta muito de castanhas. Obrigado.

  3. 3 Diana Sorgato 17 Outubro 2014 às 5:02 pm

    Que linda história, obrigada!


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