A hóstia e o pão ásimo

Este ano, os judeus comemoram a festividade de Pessah, de 20 a 26 de Abril.

Portanto, como os dias do calendário judaico começam sempre ao por do sol (na criação, primeiro foi escuridão, ou seja a noite, e só depois nasceu a luz), a tradicional ceia de Pessah, terá lugar esta noite, 19 de Abril, data em que estou escrevendo esta história.

Pessah significa, na língua hebraica: “passagem”. E comemora, na realidade, diversas passagens, mas sobretudo a passagem da escravidão no Egipto para a liberdade na Terra de Israel.  Isto na vertente nacional da festividade. No ciclo anual, é a passagem do inverno para a primavera.

Pessah dos judeus e a Páscoa dos cristãos estão intimamente relacionadas.  Na realidade, são a mesma festividade, mas encarada sob pontos de vista históricos diferentes.  Os judeus lembram a libertação da escravidão do Egipto; os cristãos recordam a morte e a ressurreição de Jesus.

Segundo os Evangelhos, Jesus estava precisamente a celebrar a ceia judaica de Pessah, com os seus discípulos, quando foi preso pelos soldados romanos.

Teoricamente até coincidem nas datas em que são comemoradas: segundo o calendário lunar judaico, a festividade tem uma data fixa: principia no dia 14 do mês de Nissan. Como os meses lunares principiam com a lua nova, o dia 14 será mais ou menos o da lua cheia. Em relação ao calendário solar, que todos seguimos na vida laica, é uma festa móvel.

A data da Páscoa cristã foi fixada no primeiro concílio de Niceia, no ano 325.  É comemorada no primeiro domingo, depois da lua cheia da Primavera (no Hemisfério Norte, ou do Outono, no Hemisfério Sul).  Portanto, teoricamente, será no domingo mais próximo do tal 14 de Nissan dos judeus, em Março ou Abril do calendário solar.

Este ano, não foi assim. A Páscoa cristã foi exactamente um mês antes do Pessah judaico. A explicação é simples. Como 12 meses lunares são menos do que um ano solar, o calendário judaico, em determinados anos, tem que ser ajustado com um mês adicional – tem treze meses.  Foi o que aconteceu este anos, e, por isso, Pessah é celebrado um mês depois da Páscoa..

Para ambas as religiões é uma das principais, se não a principal festividade do ano.

Os principais símbolos do Pessah são o cordeiro pascal (sacrifício do animal, que passou a ser apenas simbólico desde que o Templo de Jerusalém deixou de existir), o pão ázimo, chamado Matsá, pão sem levedura, o único que os judeus podem comer durante os oito dias de Pessah, em recordação de que, quando os seus antepassados fugiram dos egípcios, que os perseguiam, levaram apenas a massa, que tinham preparado para o pão, e que não teve tempo de levedar, e quatro copos de vinho, a cada um dos quais corresponde uma bênção, bebidos nas paragens que o pai da família faz, enquanto conta aos filhos, durante a ceia, a história do Êxodo, ou saída do Egipto.

Ora era precisamente isso que Jesus estava a fazer, durante a ceia daquela noite, a que se costuma chamar a Santa Ceia do Senhor.

O lugar onde isso se passou é conhecido, poderão visita-lo quando, se Deus quiser, vierem um dia a Jerusalém: é o Cenáculo (sala da ceia), no Monte Sião.

Podem então ler, no Evangelho de Marcos (14:22-26): “Enquanto comiam, Jesus tomou pão e, abençoando-o, o partiu e deu-lho, dizendo: Tomai, isto é o meu corpo. E tomando um cálice, rendeu graças e deu-lho, e todos beberam dele. E disse-lhes: isto é o meu sangue.”.

O significado mais profundo do acto de Jesus naquela ceia, foi a transformação das orações tradicionais judaicas sobre o pão e o vinho, instituindo com elas a Eucaristia.   Eucaristia veio-nos do grego, através do latim, e significa “gratidão”  (eu, significa “bem”, e kharizesthai, mostrar favor; de eu deriva por exemplo, eucalipto – bem coberto – e de kharis, favor, graça, vem o carisma).

Pão e vinho. 

Que pão era esse que Jesus e os seus discípulos comiam na ceia de Pessah? Era a matsá, pão não levedado, tal como a hóstia, é pão ázimo. Não levedado. Hóstia significa em latim “vítima”, “sacrifício”, lembrando o cordeiro pascal.

E o vinho era um dos quatro cálices que todos bebem em volta da mesa da ceia de Pessah, logo à noite.

É esta a história da ceia da Páscoa judaica e da Eucaristia cristã.

9 Respostas to “A hóstia e o pão ásimo”


  1. 1 Nuno Matos 20 Abril 2008 às 12:04 am

    Caro Inácio:

    Pois que seja uma Páscoa bem festejada. Dias muito felizes para todos.

    Nuno

  2. 2 JANE GLASMAN 19 Julho 2008 às 3:17 am

    Querido Inacio,
    Que bela surpresa cá encontrar teu blog (como nao mo avisaste?), só suplantada por ver texto meu nele (!?!)
    Agradeço muito (vindo de tua parte é altamente elogioso)!
    Chi-coração!
    Jane
    P.S. Ops! Agora reparo que não me citaste…

  3. 3 JANE GLASMAN 19 Julho 2008 às 8:12 am

    Querido Inácio,
    Minha intenção não foi ofender, mostrar-me ofendida, muito menos procurar briga.
    Não contigo, que respeito, prezo e sempre tão bem me tratou neste universo virtual em que nos conhecemos.
    O que passou foi que segui um link sugerido que “desembocou” em seu blog.
    Chamou-me a atenção o tema “A hóstia e o pão ásimo”, porque fora este justamente o tema que abordei em meu artigo de Pessach este ano.
    Segue, em anexo e no corpo do e.mail, tal como enviei.
    Veja a semelhança! E veja, como vi agora com calma, a diferença…
    Com o susto do seu e.mail agora recebido, fui ler ambos os textos e constatei um caso de “paralelismo histórico” ou sintonia de pensamento!
    Perdoe-me se meu comentário pareceu eivado de animosidade!
    Não, de forma alguma, não!
    Não o acusei de plágio nem poderia cometer tanta indelicadeza num comentário aberto!
    Por favor: procure compreender o que passou, para que possamos voltar à paz.
    Com sincero carinho e admiração,
    Jane B. de Glasman

    A matzá, a hóstia e a ironia (ou: não comemos criancinhas)

    © Jane Bichmacher de Glasman*

    A ceia que foi a origem da eucaristia era um seder de Pessach.

    A origem da hóstia é o pão ázimo (matzá). A palavra vem do latim hostia (=vítima); significa “vítima oferecida em sacrifício para uma divindade” e “partícula de pão ázimo que se consagra durante a comunhão”. Em hebraico, as palavras correspondentes são Korban e Matzá, respectivamente.

    Antigamente na Igreja os fiéis ofereciam o necessário para o culto, sobretudo o pão e o vinho. Desde o século XI, o pão utilizado no altar é preparado à parte pelo clero. Ele tem que ser de farinha, ázimo e com marcas que o distinga do pão comum. No século XI, a Igreja católica ordenou que se utilizasse na Missa somente pão sem levedura[1]. Quanto à forma do pão eucarístico, o Papa São Ceferino (séc. III) os chama de “coroas” por causa de sua forma redonda[2].

    Em suma: a hóstia é basicamente uma matzá shemurá[3] kasher!

    Mas a macabra ironia começa um pouco depois.

    Em 1215, no IV Concílio Laterano, foi estabelecido o dogma da transubstanciação, que afirma que o pão e o vinho da comunhão não somente simbolizam, mas milagrosamente se transformam no corpo e no sangue de Cristo. Esta doutrina, associada a outras medidas discriminatórias contra os judeus[4], tornou-se fonte de anti-semitismo cristão. Destacam-se duas calúnias:

    1) Profanação da hóstia: Durante muito tempo, circularam acusações de que a hóstia era profanada pelos judeus, que tentavam roubá-la para esfaqueá-la, atormentá-la e queimá-la numa tentativa de “recrucificar” Jesus. Muitas estórias circulavam para ilustrar. Em 1298, a acusação de profanação da hóstia fez com que toda a população judaica de Röttingen fosse queimada, seguindo-se um massacre dos judeus por toda a Alemanha e na Áustria. 100.000 pessoas foram assassinadas e em torno de 140 comunidades judaicas dizimadas. Em Praga, em 1389, um sacerdote carregando uma hóstia foi acidentalmente salpicado de areia por algumas crianças judias que brincavam. Em conseqüência disto, 3.000 judeus foram massacrados.

    2) Libelo de Sangue: afirma que judeus matam cristãos para obter sangue para Pessach e outros rituais. Acreditava-se que os judeus precisavam beber sangue cristão a fim de que sua aparência pudesse continuar humana; o sangue cristão também ajudava a eliminar o foetur judaicus, “fedor de judeu”, que era transformado em “odor de santidade” possuído pelos cristãos. Outra versão desta acusação era que os judeus seqüestravam bebês cristãos, matavam e moíam seus corpos para fazer matzá para Pessach. Esta calúnia é tão absurda que seria cômica se não tivesse tido conseqüências tão trágicas. Ao povo judeu é proibido beber o sangue de qualquer animal, muito menos sangue e carne humanos. Apesar de sua óbvia falsidade a qualquer pessoa com um mínimo de conhecimento das leis dietéticas judaicas, milhares de judeus foram assassinados por causa desta mentira. E pior: ela continuou até nossos dias… Entre 1880 e 1945, o libelo de sangue espalhou-se largamente no centro da Europa Oriental. O jornal nazista Der Stürmer apresentava regularmente figuras de rabinos chupando o sangue de crianças alemãs. E a calúnia persiste, travestida, principalmente na mídia muçulmana extremista antiisraelense…

    O aparecimento de tais doutrinas mostra uma completa ignorância do estilo de vida do povo judeu, bem como uma falta de diálogo e relacionamento cristão-judaico. A própria Igreja Católica só o declarou falso depois da década de 1960.Parece absurdo que tal coisa ainda aconteça nos dias de hoje, mas o anti-semitismo não morre facilmente.

    Para concluir, não posso deixar de mencionar um outro lado da história: a dos marranos. Estes heróicos mantenedores secretos de um judaísmo do qual foram despojados por um batismo forçado em terras ibéricas em tempos medievais, ao serem “redescobertos” no século XX, conservavam o Iom Kipur, o Jejum de Ester (na véspera de Purim) e Pessach (Páscoa), por eles chamada a Festa Santa, sua festa mais importante. Em interessante documentário[5] mostram como os marranos de Belmonte (hoje uma comunidade guiada por um judaísmo conservador tradicional) assavam as matzot em uma cerimônia especial, com lençóis brancos, estendidos no chão, e as mulheres que se ocupam do afazer, também vestidas de branco. No passado, costumavam assar as matzot só no terceiro dia de Pessach para enganar a Inquisição, que invadia suas casas na noite do Seder (primeira noite da festa) a fim de procurar a prática da fé judaica. As cantigas que entoam, antigamente eram cantadas em pequenos grupos, em tom baixo, quase sussurradas. No quinto dia da festa, ao raiar do dia, saíam para o rio próximo à cidade, cada um levando um galho de oliveira. A cerimônia no rio era um dos momentos mais importantes da vivência marrana. Eles batiam no rio em lembrança da abertura do Mar Vermelho e atravessavam-no diversas vezes. Os galhos de oliveira eram guardados até o ano seguinte para assar as matzot.

    Entre os que comemoravam Pessach escondidos, buscando driblar a Inquisição, e os que abrem as portas de suas casas no Seder, tanto para que entre o que tem fome como para se verifique que não há sangue no ritual nem carne de criancinha cristã, seguimos celebrando a liberdade e esperando por maior tolerância entre os homens de boa vontade. Mais que tolerância – aceitação.

    * Doutora em Língua Hebraica, Literaturas e Cultura Judaica -USP, Professora Adjunta, Fundadora e ex-Diretora do Programa de Estudos Judaicos –UERJ, escritora.

    Publicado em Visão Judaica 67, abril de 2008.

    ——————————————————————————–

    [1] Embora desse liberdade para que o rito grego continuasse a consagrar com pão levedado

    [2] La Santa Misa:Ediciones Rialp, Madrid, 1975- Autor: Anônimo, pp. 211 – 224s

    [3] A que é fabricada com a farinha de trigo com a qual se teve cuidado desde o momento da colheita para que não entre em contacto com água e fermente

    [4] Uso de vestuário distintivo: tecido amarelo, chapéu pontudo; proibição da prática de algumas profissões e do casamento com cristãos, bairros especiais, expulsão de alguns países.

    [5] Ierushalayim she-hayta biSfarad, da TV israelense, em 1992.

  4. 4 Inácio Steinhardt 19 Julho 2008 às 8:35 am

    Querida Jane,

    Eu nunca pensei que tivesse havido animosidade no teu comentário.
    Apenas fiquei triste porque poderás ter deixado aos meus leitores a impressão de que eu tinha praticado um plagiato, e isso seria para mim quase uma ofensa.
    Ainda bem que verificaste que não foi esse o caso.
    Como te escrevi em particular, nada do que eu escrevo aqui é inédito. É tão somente fruto de leituras e de algum estudo.
    Sabes bem com que frequência quem escreve verifica posteriormente que outra pessoa teve a ideia de abordar o mesmo tema, através de outro prisma, ou até o mesmo. Acho isso naturalíssimo e não vejo nenhuma intenção dúbia.
    Tenho profunda apreciação pelos conhecimentos, pela sabedoria que os teus trabalhos revelam, e pelo estilo tão claro e tão agradável com que os expões.
    Isto não significa que eu concorde sempre com as tuas deduções etimológicas, o que é natural e legítimo, ainda que eu, como sabes e sabem os meus visitantes a este blogue, não tenha formação sobre este tema, que me autorize a contestá-las.
    Claro que não houve, não há, nem poderá haver nunca “briga” entre nós. Apesar de não nos conhecermos pessoalmente.

    Esta nossa conversa pública teve, finalmente, um resultado útil e agradável. Também isto é para o bem – disseram os nossos sábios.

    Em meu nome e no dos meus visitantes, agradeço os dois magníficos textos, com que nos brindaste, e que aqui ficam como testemunho da nossa amizade.

    Inácio

  5. 5 Manoel Medeiros 9 Setembro 2008 às 12:38 am

    Grata surpresa o seu blog.
    Felicitações!
    Como palavras são do seu interesse, ázimo vem de a: não + zimus: fermento; ou seja, pão não fermentado (sem bolhinhas)
    Algumas doutrinas usam isto para condenar como maléficos à saúde os alimentos “levedados”.
    Não sabem que o levedo não era utilizado somente em função da sua dificuldade de manutenção num clima árido onde falta-lhe o seu principal elemento: água.

    Vou acompanhar atentamente as suas postagens para aprender um pouco mais!
    Se puder colaborar, o farei.

    Manellis

  6. 6 eliane pontes 25 Agosto 2009 às 9:52 pm

    POSTAGEM MUITO ESCLARECEDORA, QUE CONDIZ COM A SAGRADA ESCRITURA,
    QUE DIOS O BENDIGA!

  7. 7 Johnny Notariano 11 Abril 2012 às 7:30 pm

    Acabei de saborear de um amigo e colega aqui na USP um pedacinho de pão -Matsá- ele importou de Israel- esqueci-me de perguntar se ao tomar esse pão com as mãos, existe alguma oração de participação. Muito obrigado

  8. 8 neide saraiva 28 Janeiro 2013 às 3:52 pm

    Eu acho um absurdo cada religiaõ tratar a palavra de DEUS de maneira diferente cada uma da maneira q le comvem tenho procurado tirar algumans duvidas mas as vezes fico ainda mais confusa.. Então vou fazer o q o senhor..Examinar as escrituras , e as duvidas q eu tiver Creio q ele mesmo tirara no tempo certo Porque o homem nada mais sabe além do q ta escrito e do q o seu entendimento lhe permite …Q Deus abençõe a todos e apaz esteja com v6…..

  9. 9 Guilherme 6 Setembro 2016 às 4:56 am

    Muito esclarecedor da ligação entre as duas religiões irmãs.
    Lamento que o passado entre os povos que as professam tenha sido de tão renhidos combates. Um futuro de aceitação e convivência pacífica há de nos esperar.
    Obrigado por este belo ensinamento.
    Deus abençoe.


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