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Quem era a Maria das bolachas?

A minha história de hoje foi inspirada num artigo do «Diário de Notícias”, com o título de «Bolacha Maria: Uma bolacha perfeita».

Este título tinha que me trazer à memória reminiscências da minha primeira infância, esse período tão ligado ao meu saudoso “avô” adotivo, Jacinto, de Camarate, sobre o qual já escrevi aqui várias vezes.  Sempre senti no “avô Jacinto” uma dedicação tão amorosa, como se eu fosse realmente seu neto. Estou a falar nos meus primeiros dois anos de vida, pois com a idade de 3 anos já nos mudámos de Camarate para Tremês.

Operário da construção civil, como se diz agora, pedreiro na fala daquela época, Jacinto mourejava todos os dias, de sol a sol, saindo de casa antes do sol nascer, para ir para o trabalho, percorrendo muitos quilómetros a pé, pela “estrada militar”, em direção a Sacavém, ou pela estrada da Charneca, até Lisboa.

O sábado era o dia da “jorna”, assim se dizia então o magro salário auferido diariamente pelo duro trabalho de muitas horas, e que era pago semanalmente, para o trabalhador poder pagar as dívidas ao merceeiro da aldeia, e lhe merecer o crédito para mais uma semana de “fiados”.

Mas, assim que se achava com algum dinheiro no bolso, e antes de empreender o caminho de regresso a Camarate, o “avô” Jacinto procurava a primeira mercearia, onde quer que se encontrasse, para comprar uma guloseima para o seu “neto”, sempre a mesma.

Quando chegava, cansado, com a pela ressequida pelo sol e pelo pó da estrada, eu corria a abraça-lo. Era na casa dos “avós” Jacinto e Maria que eu passava a maior parte do meu tempo.

No sábado, sempre os olhos do “avô” brilhavam de felicidade. “Ò Inácio, que dia é hoje?”. Mesmo que eu não estivesse a par do calendário, esta pergunta sugeria-me logo a resposta certa: “É sábado!”. “E é dia de quê?”. Agora, era já com voz baixa, meio envergonhado, que eu respondia: “É dia de bolos”. Era isso, todos os sábados, ao voltar do trabalho, Jacinto trazia, escondido atrás das costas, um pequeno cartuxo de papel pardo, com “bolachas Maria”. Era o meu luxo e a minha guloseima semanal.

“Bolachas Maria” já existiam há muitos anos e existem ainda hoje em todo o mundo. Não passam de moda. O seu sabor quase neutro, talvez ligeiramente abaunilhado, a sua forma redonda, plana, e consistência seca, fazem com que se torne no bolo ideal para acompanhar o café ou o chá, singela ou barrada com doce, chocolate, etc.

Também a bolacha Maria tem a sua história.

“Bolacha” ou “biscoito” são sinónimos, pese a quem numas terras use um dos termos e noutras o outro para designar variedades diferentes. “Bolacha” vem de “bolo”, com o sufixo diminutivo “-acha”. “Biscoito” veio-nos da língua francesa, onde se diz “biscuit”, ou seja “cozido duas vezes”. Como tudo nasce para servir um propósito, a história é que os padeiros-confeiteiros serviam-se antigamente de uma pequena porção da massa dos bolos para experimentar o calor do forno. Depois coziam o resto dos bolos. Mas aquela primeira massa, que geralmente ficava um pouco húmida, era levada ao forno segunda vez, para secar. Cozida duas vezes – bis-cuit, em francês – ou, pelo mesmo motivo, “cookie” – de “cook” – cozer.

Em português, a palavra “biscoito” já existia desde o século XV, quando os navegantes o levavam como mantimento para as longas viagens. O termo “bolacha” só começou a ser usado no século XIX.

Em 1857, dois padeiros empreendedores, James Peek e George Hander Freans, de Dockhead, um arrabalde de Londres, começaram a fabricar “cookies” e a vende-los para outras áreas. Para isso adquiriram uma carruagem que circulava por todo o país, ostentando o nome “Peek Freans”.

Tornaram-se conhecidos e em breve mudaram para Clements Road, em Bermondsey, onde abriram uma fábrica, que dava trabalho a dezenas de operários.

Quem passava na localidade não podia ignorar o cheirinho a bolo que se espalhava no ar.  Por isso lhe chamam ainda hoje “a terra das bolachas”.

Em 1870, quando da guerra entre a França e a Prússia, a fábrica dos dois sócios, agora já com a firma “Peek Freans & Co. Ltd”,  recebeu das forças armadas uma encomenda de 10 milhões de “cookies”. Isso contribuiu definitivamente para o desenvolvimento do negócio como grande empresa internacional. Hoje existem subsidiárias e licenciadas da Peek Freans em muitos países do mundo, e as suas embalagens de lata são já há muitos anos objeto de coleção.

Maria Alexandrovna

Ora, em 1874, o segundo filho da rainha Vitória, Alfredo, duque de Edimburgo, casou-se com uma grão-duquesa russa, Maria Alexandrovna.

Peek Freans, com o grande prestígio de que já gozavam, como fabricantes de “cookies”, entenderam homenagear a duquesa com um novo biscoito, redondo, com um friso decorativo, e, no centro, gravaram o nome da homenageada: “Maria”.

Como sucede ainda hoje com os casamentos reais britânicos, o casamento dos príncipes foi seguido com grande interesse em toda a Europa, . Toda a gente quis provar as bolachas com o nome da noiva.

Um pouco por toda a parte, industriais locais começaram a imitar o produto. Portugal e a Espanha foram dos primeiros, mas até no Japão se produzem hoje bolachas iguais, com o nome “Maria” gravado no centro, e o imprescindível “Made in Japan”.

Mas o país onde as “bolachas Maria” entraram francamente na cultura nacional foi a Espanha do século XX. Durante o período de fome que se seguiu à guerra civil espanhola, a falta de pão era tanta que o governo empreendeu uma campanha para a produção de trigo. O resultado foi uma fartura tal do cereal que, para lhe dar vazão, os padeiros começaram a fabricar grandes quantidades de bolacha. Tornou-se habitual nos cafés colocar em cima do balcão pratos com bolachas “Maria” (com o nome estampado), para os clientes se servirem, acompanhando o café. Era também um símbolo da recuperação da economia espanhola. E tornou-se um biscoito favorito.

Dizem as estatísticas que, 40% dos cartões com biscoitos que se vendem em Espanha são “galletas Maria”.

Podem começar, meus amigos, a olhar para a bolacha Maria com outro respeito…


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